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UM CASAMENTO INFLUENCIADO POR MECANISMO OCULTO


“Mais do que os fatores externos, são os conflitos internos que nos impedem de sermos livres”

Flávio Gikovate

Maneco está furioso com sua esposa, e no carro desabafa:

-Você não sabe o que quer, só faz curso que não dá em nada, ja fez línguas e não usa, ja fez o curso de empreendedorismo e a sua empresa de enxovais de bebe não decola, agora essa faculdade que está te deixando louca, e inventa esse curso de PNL para fazer ? Você tem que me ajudar na minha loja virtual, tem de embalar as coisas para mim, tem de levar ao correio, e isso você pode atrasar?

-Mas.. você me pediu para ir fazer compra no centro, eu faço tudo o que você me pede!! Nada lhe contenta, sempre falta, não dou conta das minhas coisas, não gosto do que faço e faço porque você me obriga, tenho o serviço da casa toda também e ninguém me ajuda.

_Você é que não me ajuda, eu ja falei que quero fazer um pé de meia em alguns anos para ir morar no nordeste e ficar tranquilo sem trabalhar, caramba, você não entende?

_ Como eu não te ajudo, se quando o conheci você não dirigia, não tinha carro, não trabalhava, e meu pai fez tudo para me ajudar, deu esse sobrado para a gente morar, paga a minha faculdade e ainda paga a sua de engenharia? Quem você era antes?

- Não conversa mais comigo, sua ... você está jogando as coisas que fez na minha cara!! Preguiçosa, desorientada, confusa, nunca acaba o que começa, é o que você é....

Maneco e Cris estão vivendo uma situação difícil, porém podemos identificar muitos casos parecidos com essa história, então eu convido você leitor: vamos descobrir quem está por trás dessa confusão entre os dois?

Quando se conheceram, Cris gostou dele porque lhe parecia uma pessoa simples,pobre que nada tinha, e ela, de família estável financeiramente, não valorizava o dinheiro, coisa que ele não tinha. Amigos se mobilizaram e um emprego surgiu, ela o ensinou a dirigir e pagou a carteira de condutor para ele, Bem que sua mãe dizia, “esse cara é um pé rapado, não tem nada para oferecer, sai fora”. Mas ela despojada, acabara a faculdade de letras, acreditou que o amor era o mais importante e superaria tudo. Correu atrás das coisas mais fundamentais, um lugar para morar que o pai ofereceu a ela, e casaram. Na sequência, engravidou. Como era habilidosa confeccionou um enxoval de bebe lindo, só que não usou, pois perdeu o bebê no quarto mês gestacional.

Ao vender o enxoval, Maneco viu ali uma fonte de renda, além do trabalho dele, fez de tudo para que ela trabalhasse com o produto, enquanto ele por sua vez, trabalhava e desenvolvia uma loja virtual de brinquedos antigos. Mas estava insatisfeito com os resultados financeiros da empresa da esposa, pois não alcançava a renda que imaginara, E ela andava perdida entre a depressão produzida pelo luto, os afazeres da casa, os afazeres da sua empresa e atribuições da empresa do marido. Ainda para ajudar, como só tinham um carro, era incumbida de levá-lo e buscá-lo diariamente para adiantar o lado dele. Sempre tinha de interromper e não conseguia acabar de atender uma mãe que queria comprar seu bercinho, dar conta das costureiras e produtos da sua empresa. Afastou-se completamente de si mesma sentindo-se perdida, infeliz, incompetente e desamada.

Concordemos senhores a essa altura que de simples e despojado Maneco nada tem, é ambicioso, está bem longe do quarto e cozinha onde foi criado com a mãe e os três irmãos e está profundamente decepcionado com a Cris, pois esperava mais dela, como de início da relação. O que um esperava do outro?

Quando se conheceram, ele viu nela a possibilidade de evoluir em todos os aspectos, e projetou nela, como se ela fosse uma tela de cinema, o seu filme, isto é, todos os seus sonhos de futuro, enriquecer para não trabalhar mais depois de algum tempo, viver tranquilamente numa praia paradisíaca. Enquanto ela projetou nele, como se ele fosse uma tela também, suas expectativas para o futuro, alguém que a tratasse bem,a amasse, fosse companheiro, e participasse ativamente da vida familiar, e das atividades da igreja a qual pertencem.

“Projeção é um mecanismo de defesa, onde o indivíduo expulsa de si - e localiza no outro qualidades sentimentos e desejos e mesmo objetos que ele desdenha ou recusa em si. Trata-se de uma defesa de origem muito arcaica mas que encontramos atuante tanto na paranóia, como em modos de pensar tidos como normais”. (Vocabulário da Psicanálise J. Laplanche)

Voltando aos nossos protagonistas,ambos então serviram como uma tela para a projeção “ do longa metragem do outro”, e sofrem na medida em que o outro não corresponde . E Cris, angustiada, procurou a psicoterapia para se reencontrar. Percebe que tem afinidades com a área humana. Encontra o rumo, interessa-se, é altamente focada nas matérias, quer se formar para além do diploma, quer partir para a ação, e participa de todos os cursos possíveis que seu pai possa custear. Maneco se irrita profundamente com essa postura, sofrendo o medo de perdê-la, de perder-se em seus ideais, de não conseguir se” aposentar” aos quarenta anos. Então agride reivindica, esbraveja. O que ele diz para ela, é exatamente o que ele precisaria ouvir sobre si mesmo. E o que ela diz para ele, é o que deveria ouvir de alguém, pois apesar de não ser gananciosa, aceita a boa vida que o pai oferece.

Quero com esse exemplo deixar você pensando sobre as projeções que faz e sobre as pessoas que usa para projetar. A “tela” tende a ser alguém próximo, de sua família, companheiro, companheira, filhos, ou vizinho, irmão, amigo chefe. Descubra ao menos uma projeção sua, e tente trabalhar isso para muda-la. Perceba que o que lhe pertence nada tem a ver com o outro e que é você mesmo que precisa incorporar o assunto. O outro não tem o poder e nem a obrigação de fazer ou ser o que você escolheu para você . Quanto a Maneco e Cris, bem, eles se amam e terão uma estrada a percorrer com sabedoria, para reorganizar e descobrir cada um seu próprio universo oculto que com certeza é bem maior e pode ir bem além de uma projeção. Vamos torcer otimisticamente por eles?

Matéria publicada no jornal em 10 de fevereiro de 2015.


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